Foi uma vez

                Foi uma vez.
                Se ninguém é ainda o que há pouco foi, porque é que os contos têm por hábito começar por “era uma vez” no lugar de “foi uma vez”? Este conto é sobre alguém que foi e que já não é. Nunca mais será.
                Comecei a escrever ao som de “A Nightingale Sang In Berkeley Square” de Stan Getz com Bob Brookmeyer. Agora esta parece a introdução de um policial manhoso dos anos 70. Experimentem ler os primeiros parágrafos ao som dessa música. Não sentem já o sabor do cachimbo, o calor de um sobretudo e um chapéu a apertar-vos a cabeça? E ao fundo, Paris a preto e branco.
                Quantos clichês.
                - Eu também o era, sabes?
                - Um clichê?
                - Não, um polícia manhoso dos anos 70 que fumava cachimbo e usava chapéu e sobretudo. Na impossibilidade de ter ao fundo Paris a preto e branco, usava um sobretudo branco e só saía de casa à noite.
                - E quando é que isso foi?
                - Algures nos anos 60, fui um vanguardista.
                - E também costumas ser sempre assim vanguardista a fazer conversa com pessoas?
                - Não, é a primeira vez.
                - Ahahah costumam acreditar quando dizes isso?
                - Até agora, só a primeira é que não acreditou.
                - És engraçado, para quem está a começar. Treinaste mais piadas ou o objetivo é usares essa a noite inteira?
                - Não é que tenha treinado, mas ainda me recordo da maior parte.
                - Então sempre tens experiência no que toca à vanguarda.
                - Na verdade não. Se tudo o que disse era verdade e me saiu de forma espontânea, não se pode dizer que tenha experiência no que quer que seja para além da honestidade.
                - Estás a dizer que não mentes?
                - Estou a dizer que não mentia.
                - E agora, já mentes?
                - A ela não.
                - E ao resto do mundo?
                - Ao resto do mundo nunca disse uma verdade.
                - E agora, já lhe mentes a ela?
                - Agora já não lhe falo.

Luís Vasco Fernandes

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